30. o grito de uma mula(ta)

eu não vou mais ter dó de ninguém
ningém tem dó de mim
só ficam lá me olhando de canto ressabiados cochichando falando mal com medo e querendo me diminuir pra eu caber na compreensão que fazem de mim
começaram a me dizer que eu era mulher forte demais, falando agressiva demais, radical demais, demais pro mundo ouvir
que eu incomodava.
eu calei meu coração pra caber no mundo
dos outros
não o meu mundo.
coloquei chumaços de algodão na minha boca pra fala sair mais suave
como deve falar uma mulher
aos poucos me ensinaram como quem ensina uma mula
-mula sim porque mula de mulata como me chamam-
a ir carregando o peso do mundo meio troncha pros lados a coluna desgraçada
e tudo que jogavam em mim eu tinha que ter consideração
cuidado com os outros
falar baixo
olhar onde piso por onde ando avaliar se o mundo tava preparado pra lidar comigo
e assim eu comecei a aprender a pedir desculpas por ser que eu sou
continuava com os cabelos pra cima as roupas extravagantes o batom vermelho
mas pedia licença
me ensinaram que eu deveria dar a outra face
enquanto me chicoteavam as costas
cheios de problemas esse povo cheio de problemas enfiavam os problemas na minha boca nos meus ouvidos nos meus olhos e pediam pra eu resolver pra eles
tanto os branco e até os pretos
sempre procurando respostas
eu sempre uma mãe tendo os peitos chupados pra nutrir aqueles que não souberam andar sozinhos
servindo de colo e servindo de burro pra carga de quem me via só como ponte pra chegar onde precisavam e depois me abandonavam na estrada suja e cansada com sede e com fome
e pra mim? nada
eu estou brava
eu comecei a ter raiva
e todo mundo me dizia que a raiva só me fazia mal
que eu deveria perdoar
o caralho com o perdão eu chutei a porta
eu recusei tudo eu falei vou viver pra mim e pros que vivem como eu os que são tratados que nem eu
e que surpresa a minha
quando até os meus
me tratavam como mula
a diferença é que me davam uma cenoura, um afago na cabeça e me falavam de afeto
como eu te amo eles disseram
é o caralho
eu decidi que não vou amar ninguém não vou dar nada pra ninguém
você não sabe o que é solidão
você não sabe o que é a dor de carregar um mundo nas costas
ser rejeitada
e descartável
ser cuspida e ser destratada
você não sabe o que é ter que me diminuir pra caber na leitura que o mundo quer fazer de mim
pedir licença o tempo inteiro pra entrar no lugar que eu construí! no lugar que eu carreguei os tijolos pras pessoas fazerem casa dentro de si mesmas
e ficar no portão
você não sabe o que é ter que entrar na casa dos outros e pedir carinho, afeto ou ajuda
às vezes ter que ouvir junto com as migalhas afetivas que eu deveria fazer mais
trabalhar mais
ser menos
me diminuir
pra deixar todo mundo mais confortável
é o caralho
vocês não sabem o que é receber migalhas de amor
e não vão me convencer agora que sou a propagadora da raiva e do mal no mundo
o mal quem fez foi vocês
comigo.
eu quero é que todo mundo se foda
eu vou falar mesmo
eu não vou ficar calada num canto pra vocês continuarem tendo a liberdade de atirar restos em mim e chamar isso de amor
quando tudo que eu sempre fiz foi tentar deixar tudo melhor e mais confortável pra vocês
é o caralho
tem um vulcão em  mim e eu vou erodir
eu vou derramar lava e fogo por toda essa maldição
não vai retar pedra sobe pedra
existe um furacão em mim
eu não vou fazer a manutenção da paz maldita de vocês
a paz de vocês sou eu calada
pra vocês continuarem sendo ruins sem ninguém dizer nada
dar a outra face é o caralho
perdoar é o caralho
vou me perdoar por não mais abaixar a cabeça pra quem quer me diminuir
vou me perdoar por odiar tanto esse mundo ruim
tá na hora de vocês finalmente darem a face
e não a outra, porque vocês nunca deram nenhuma
eu vou entrar em erupção
e vocês que lidem com isso
e com os desconfortos que isso cause em vocês
e a quem vier me dizer que eu sou louca que eu sou ruim que eu sou violenta que eu sou um grito na garganta esperando pra ser dito que eu sou feia que eu sou gorda que eu sou escrota que eu não tenho cuidado que eu causo dor que eu machuco as pessoas que eu sou violenta que eu vou te agredir que eu sou radical que eu sou ruim
daqui pra frente eu vou dizer
obrigada.
isso é porque vocês ainda não me viram brava.

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